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Três infâncias, de Mayrant Gallo

Mayrant Gallo
Foto: Divulgação | Arte: Mirdad


"Eu olhava os garotos com curiosidade. Já eles, não me olhavam. Por que olhariam? Estavam tão acostumados a si mesmos que não perceberiam nem sequer um aleijado. Por eles, o mundo bem que poderia ser só aquilo, um prédio murado com um portão de ferro que raramente transpunham (...) Mas, entre as diferenças que se nos interpunham, uma ao menos soava a meu favor, sim, e era a única, e foi com ela que eu cresci: meu mundo era o eco dos meus passos sobre caminhos novos"


"Tinha uma voz que jamais perdia de todo o poder de arrebatar. Nem mesmo, talvez, quando enfraquecida pela rouquidão de um resfriado ou pelo incômodo de um choro que se prolongou para além do normal (...) Tinha o atributo ilimitado de sempre estar presente, e reservavam-lhe vida eterna, para além da matéria e da morte, todos os homens que a viram por um só instante, num relance. Fui um desses seus adoradores de primeira ordem. Não consegui permanecer invulnerável às desordens de amor que ela provocava, nem às convulsões de ódio que não a amar nos imprimia. Cresci uma década, e sepultei outra, só por observá-la um minuto e ouvir-lhe a voz a um só tempo aveludada e áspera"


"Como acreditar num homem para quem palavras não passavam de meios de desculpas? Mas meu pai acreditou, ainda assim. Acreditaria sempre, confiava nos homens, em todos os homens, até nos mais baixos, sem caráter, sem escrúpulos, aqueles que gritavam quando por direito só lhes cabia o silêncio"


"Eu ainda não havia descoberto, ou talvez não tivesse compreendido muito bem, naquela época, o sentido do dinheiro. Sem ele, a mente não somava: subtraía palavras, silenciava, encolhia. E logo a pessoa se reduzia a um ombro que somente vagava e espreitava os desastres"


"É estranho como durante tanto tempo acreditei que faria isso, que furaria os garotos, e que furar alguém não implica coisa alguma. Hoje sei que não é bem assim, por mais ambíguo que seja o nosso país, a moral do nosso país. Você tem uma faca, faz com ela o que quer, mas sobre aquilo que farão com você depois não há controle... A mão que arrebata você é tão grande, e forte e cerrada, e você se sente tão oprimido e abandonado, que cedo lhe vem a compreensão, irrevogável, de que todas as pessoas têm direito natural à vida, não importa o que façam com ela. Você revê – ou relê – a vida e a compreende a partir do seu destino infame"


"Naquela época, e especialmente naquele dia, eu faria de tudo por meu pai, até sangrar se fosse o caso. E pelo mais sórdido motivo. Por ele daria meu braço às agulhas, me exporia às navalhas.
Largou os olhos de sobre mim e os lançou contra o edifício do engenheiro. Um prédio alto, luxuoso, com interfone, portão automático e porteiro uniformizado de azul, num tom suave que não magoasse os olhos dos moradores. Seus vidros subiam contra o céu impotente, violando as nuvens. Olhá-lo nos dava vertigem. Admirá-lo nos fazia sofrer"


"Não era bonita, a mulher; nem mesmo sem roupa. Era incrível como algumas mulheres pareciam nascidas com a marca da feiura e da apatia, que, mesmo quando nuas, nada conseguiam despertar em quem as contemplasse. Aquela era assim. Vestida lembrava uma flor murcha; despida, uma sepultura"


"Ele dormira mal de noite. Vinha dormindo mal havia tempos. Preocupação em excesso, dor, indignação, repúdio, desânimo, ultraje. Não saber se hoje ou amanhã teríamos o que comer, se haveria trabalho, se receberia o dinheiro que tinha na rua, nas mãos de ricaços escrotos. Sim, pois todos aqueles que deviam algum dinheiro a meu pai moravam em luxuosos edifícios ou em mansões de um quarteirão inteiro, cercadas de muros altos com ferros pontiagudos, e carros importados tinindo de novo nas garagens de portas inexpugnáveis"


"Dona Matilde e Tia Elba foram à igreja pedir pela saúde de Vovô. Mas Deus já não ouve. Diariamente crucificado pelos homens, renega a face criadora e fenece sangrando eternas chagas"


"Tia Elba voltou ontem da Bélgica. Voltou contando vantagens. Na Bélgica tem isso, tem aquilo, aquilo outro... Por fim, Vovô perguntou:
– Na Bélgica tem banheiro?
– Claro que tem! – respondeu Tia Elba, horrorizada.
– Ah, sim! Pensei que fosse diferente"


"Em seu 79º aniversário, depois do jantar, Vovô sentou-se à varanda e chorou longamente – e em silêncio de gare. Não pela vida, que expirava, não pela idade, que, apressada, dava saltos enormes, não pelo corpo, já fraco e senil, em desespero... Chorava pelas crianças, que também envelheciam"


"Dudu sempre conversa sozinho, com seu amiguinho imaginário. Vovô também fala sozinho, com seus mortos, seus fantasmas. O companheiro que não se tem, o ente querido que se perdeu... Falar sozinho, estranha aptidão nesse e em qualquer outro mundo... E que só crianças e velhos e loucos podem e praticam, para além de qualquer estranheza, na luz"


"Nasce o sol sobre o dia, emprestando-lhe sentido. Na manhã, na praça vazia, silenciar de passos, os amantes tentam desesperadamente ter-se em vida, pois que estão morrendo a cada ato"


"Um homem e uma mulher têm mais a se oferecer que o frágil e frio ato de troca. Nem cães se amam desprovidos de voz"



Presentes no livro "Três infâncias" (Casarão do Verbo, 2011), de Mayrant Gallo, páginas 27, 39-40, 18, 32, 36-37, 19, 46, 31, 80, 74, 83, 85, 84 e 75, respectivamente.

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