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Dicionário amoroso de Salvador, de João Filho — Parte 02

João Filho
Foto: Divulgação | Arte: Mirdad


"Salvador não é para principiantes. Braços abertos podem afagar ou sufocar (...) Salvador não se resume. Escapável sempre. Nasceu para seduzir e não ser seduzida. Quando alguém tenta enquadrá-la em termos mais ou menos fixos, ela escapa da moldura (...) Ruas que personificam nomes. Ruas com alma, feito gente (...) Daí cresceu a egolatria e se transformou em sinônimo de Estado. Quem vem a Salvador, vem para a Bahia (...) Sua beleza é irrefutável, disso ninguém duvida. O que às vezes me cansa é esse pendor ao cartão-postal (...) Salvador à revelia. A filosofia do cacete armado. A informalidade da chuleta, a bodega, o pé-sujo sem comparações. A estrutura do desconcerto. Se for muito arrumado, não vinga. É preciso o furdunço para o baiano aprovar (...) Salvador em si não se contém. E transborda para que possamos, apesar de tudo, amá-la"


"Se a primeira impressão é a que fica, Salvador pode permanecer nos olhos do visitante como uma cidade carnal. É verdade que transborda matéria por todos os seus poros e, dizem, o que é comprovado empiricamente, o olho do baiano é na mão. Tem que tocar para ver. Nesse sentido, ele quer corporificar os sentimentos mais abstratos. Sim, pois sentimos certas coisas que nem sabemos nomear"


"Raro. Mais do que honestidade. Raríssimo. Mais do que olhos amarelos. O silêncio em Salvador. Aqui a realidade é contada por decibéis. Não somente pessoas, mas as coisas falam. Quer dizer, gritam. Mesmo nos longos feriados nos quais grande parte da população busca outros pagos esvaziando ruas e lugares, a cidade esperneia. As formigas usam megafones. O vento discursa para ninguém, mas quer ser ouvido. Todos querem ser ouvidos"


"Um baiano sem banzo não é baiano"


"Há um ritmo para subir ladeiras. Não se apresse porque Salvador desrespeita a linha reta. Veja! Até a linha do horizonte se rebela em curvatura. Dose a malemolência e suba como quem não quer nada. Depois de certo tempo, você verá que o seu ritmo cardíaco vai se adequando perfeitamente ao seu passo (...) Na Ladeira da Água Brusca, uma das muitas que ligam a Cidade Baixa à Cidade Alta, quando você sentir que chegou ao topo, estará na metade (...) A ancestral de todas, é a Ladeira da Preguiça (...) também está abandonada, os casarões em ruínas a tornam fantasmagórica; nas noites de chuva, o vento uiva, não lamenta. Ele vive entre o ainda e o que já foi, mas não é nostálgico. Em vez de escravos carregando mercadorias grassam sacizeiros. A opressão conforme o século. Vê-se que empacamos na subida. Ou perdemos o rumo e descremos demasiado?"


"Salvador é uma orla só. O mar domina. A presença marítima é um dos dons desta cidade. Aqui todos os caminhos levam ao azul, quer dizer, ao mar. O Atlântico é o mare nostrum, o nosso mar, de águas quase mornas, lavando com seu sal o tempo e a memória. Grafando na areia e nas rochas a história do esquecimento"


"Quem é capaz de no ato de não fazer nada enxergar o senhor da matéria? Um baiano"


"Desço e entro numa soturnidade que me perturba um pouco. Sua ambiência arquitetônica favorece tal estado tristonho, e esse raio melancólico invade o mar, tão próximo que, sob essa influência, permanece apático. No Unhão, mais do que em outro lugar de Salvador, as vidas vividas parecem se acumular em extratos invisíveis pelos seus recantos. Donzelas, senhores, escravos, meninos, bichos, ventos, noites, músicos, manhãs que passaram ou habitaram esses pisos. Quem vigia por eles? O tempo. Lavrando nas pedras, na argamassa, suas filigranas. O riso é necessário, a tragédia inevitável, mas a condição humana é dramática"


"Um não baiano, encantado com uma bela passante, diz:
– Ah, morena, ainda caso com você.
– Aooonde!
O "aonde" utilizado como interjeição negativa é um achado linguístico. Se a linguagem é um reflexo da realidade, em Salvador, ela é uma farra e será sempre uma licença poética"


"Smetak (1913-1984) confirma a minha tese de que a baianidade arrebenta os parâmetros lógicos ocidentais. Suíço inventor de instrumentos-esculturas, através da teosofia pesquisou os tais dos microtons. O que é isso? Um concretista comendo caruru (...) Tentou e conseguiu, através dos nós dos sons, senão expandir o visto, pelo menos os tímpanos. Seus e alheios (...) A música-mística das partículas. Smetak dividia, subdividia uma, digamos, onda acústica ao infinito até torná-la silêncio. Ou quase (...) Smetak foi a quase imperceptível linha limítrofe entre a genialidade e a negação. Música manipulável? O vazio desenhado? Mancha barulhenta só? Talvez o espaço inabitável. A imaginação, a louca da casa, nele quis extrapolar as próprias ressonâncias. Foi ser luthier do delírio. Comprovável (...) O Tropicalismo tem dedo seu. Smetak, tak, tak"


"Galegos. Gente que sabe o sal amargo das humilhações e ofensas. Suportando injustiças e a ignorância dos que a desconhece. A vida de Rosalía é a vida dos imigrantes galegos que por aqui aportaram – pobre, anônima e sofrida. A lágrima escorrendo sem testemunhas pelos subterrâneos dos séculos. Essa gente demorou, mas venceu; se não todos, alguns. Sua melancolia não se traduz em debilidade, mas em força"


"Jorge Amado deu não apenas rosto, mas corpo romanesco à Bahia. Desse modo, aquele mundo por ele criado existe, com os seus personagens e tramas picarescas, sua malícia quantas vezes romantizada, mas também esclarecedora do nosso caráter"



Trechos presentes no livro de crônicas "Dicionário amoroso de Salvador" (Casarão do Verbo, 2014), de João Filho.

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